Passada a moda do desafio dos 10 anos (#10yearchallenge), permanece a questão da nossa privacidade online

Raphael Tsavkko Garcia
5 min readMar 20, 2019

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A ideia de que você não deveria participar do #10yearchallenge, desafio que virou moda mês passado, porque o Facebook roubaria seus dados, soa muito alarmista e até ingênua. Não porque o Facebook não use esses dados para melhorar sua inteligência artificial, mas porque o Facebook já faz isso com todos os dados que publicamos na rede.

Nossos dados (e fotos) de anos e anos já estão na rede, verificar o processo de envelhecimento por reconhecimento facial com este banco de dados é muito mais útil do que pegar duas fotos com 10 anos de diferença e nada entre elas. E o Facebook já tem os dados que precisa — o desafio apenas ajuda a melhorar o processo.

A questão é: Se você está no Facebook, você sabe (ou deveria saber) o que eles fazem com seus dados (pelo menos até certo ponto) e você concorda com isso. Ou seja, a ideia de que o desafio é algo além da continuidade de um processo que já existe é apenas alarmismo.

Sem dúvida, a ideia de que as pessoas não necessariamente postam fotos em ordem cronológica complica a inteligência artificial (IA) do Facebook, a faz ter mais trabalho, mas não há garantia de que as pessoas também postam fotos de antes e depois com as datas corretas, ou com legendas úteis, ou que não estamos apenas brincando com fotos de outros tempos. Em outras palavras, a ideia de que sem o desafio a enorme quantidade de dados junto à suposta falta de ordem cronológica das fotos confundiria a IA do Facebook, como Kate O’Neill escreveu, é um exagero. É interessante que O’Neill “confia” que a IA reconheça piadas e coisas semelhantes nos desafios de 10 anos, mas não confie ou pense que a inteligência artificial é inteligente o suficiente para fazer seu trabalho com imagens antigas.

É claro que a inteligência artificial do Facebook aproveitará o desafio de coletar dados, mas no final, tudo ao redor da rede social tem esse objetivo. Não há nada de novo. É apenas uma continuação do que já existe, não é uma notícia alarmante (o conjunto de práticas de coleta de dados é que é).

Nesse aspecto, o desafio não é “inofensivo”, porque tudo o que colocamos no Facebook (e Instagram) destina-se a melhorar a inteligência artificial do serviço, desde a publicidade até a geração de lucro para os outros — e tudo isso com regras nem um pouco claras e poucas opções para limitar o uso de nossos dados.

Muitas empresas usam aplicativos de reconhecimento facial em seus produtos. O Google emprega a identificação de rostos no Google Fotos, bem como a Apple em seus telefones e computadores. Até agora não há nada de novo. O Facebook também usa reconhecimento facial para identificar pessoas nas fotos postadas na plataforma. Não há absolutamente nenhum motivo para preocupação com esse desafio específico, esse uso específico de seus dados — o que você deve se preocupar é com o uso de seus dados em todos os momentos pelo Facebook e outras redes sociais. Novamente, a empresa já tem acesso às suas fotos e já pode usá-las para alimentar o algoritmo.

Não nos esqueçamos que, além de os usuários postarem fotos que não são necessariamente de quando dizem que foram tiradas, de animais, paisagens, fotos distorcidas também podem ser usadas… E essa é uma questão importante. Com o crescimento do uso de filtros (como os do Instagram), as fotos podem ser facilmente distorcidas, modificadas, dificultando o trabalho dos algoritmos de reconhecimento facial da IA. Colocar duas fotos lado a lado pode não ser a melhor maneira de treinar reconhecimento fácil.

Também vale a pena lembrar, como Kif Leswing apontou no Business Insider, que as câmeras de celulares estão automaticamente suavizando a pele do usuário nas fotos. A revista Cosmopolitan testou 15 filtros da Samsung e os resultados mostram que as selfies podem ser realmente enganadoras, tornando a “vida” da IA ​​bastante complicada.

Geoffrey Fowler pergunta, no The Washington Post, “se nossos telefones estão fabricando cores e iluminação para nos agradar, isso realmente conta como fotografia? Ou é arte gerada por computador? ”. Essa é uma ótima pergunta, mas a questão aqui é que talvez não estejamos olhando para alguém e para o processo de envelhecimento natural de alguém, mas para a arte gerada por computador, mais uma vez, tornando a vida da AI um pouco mais complicada do que a maioria assume.

É claro que você pode adivinhar que o desafio pode facilitar a aprendizagem da IA, pois fornece material mais pesquisável (mesmo com todas as distorções), mas isso é apenas um detalhe. A única coisa “inofensiva” a fazer seria simplesmente NÃO FAZER upload de qualquer foto em qualquer rede social, até mesmo excluir o Facebook e outras redes. Virar um eremita também ajuda.

É óbvio que quanto mais dados forem enviados para as redes sociais, melhor será para a inteligência artificial aprender, com base em fotos, nossos gostos e preferências, ou através de nossos comentários e amigos. Se há motivo para preocupação, devemos nos preocupar com as redes sociais que usam nossos dados através de permissões que ninguém incomoda ler — e a situação se torna ainda mais preocupante quando percebemos que estar fora do Facebook ou de outras plataformas é quase um suicídio social.

Há uma atração natural e pressão social para “existir” nas redes sociais, e o Facebook (entre outros) se aproveita para empurrar regras com as quais não necessariamente concordamos, mas somos forçados a aceitar para manter nossas vidas sociais (sem contar milhões de pessoas que simplesmente não têm ideia de como seus dados são usados ​​e ignoram completamente as regras das redes sociais que eles acessam).

Ou seja, nossa preocupação deve ser menos com um desafio no qual postamos fotos de antes e depois e mais com o modo como essas redes operam.

Mais interessante e até inteligente do que esse tipo de pânico seria encontrar maneiras de exigir a responsabilização de empresas como o Facebook no uso de dados, forçando políticos/legisladores a impor regras claras e duras sobre uso de dados.

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Raphael Tsavkko Garcia
Raphael Tsavkko Garcia

Written by Raphael Tsavkko Garcia

Journalist, PhD in Human Rights (University of Deusto). MA in Communication Sciences, BA in International Relations. www.tsavkko.com.br

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