ETA anuncia sua dissolução e abre nova etapa na política basca (e espanhola)

Raphael Tsavkko Garcia
6 min readApr 23, 2018

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Quase 7 anos após anunciar o cessar-fogo permanente (em outubro de 2011), e um ano após entregar seu arsenal (8 de outubro de 2017), o grupo armado ETA (Euskadi Ta Askatasuna, ou Pátria Basca e Liberdade) declarou que irá se dissolver e fará um anúnico público na primeira semana de maio.

Formado em 1959 como um grupo cultural e de resistência ao Franquismo, a ETA teve várias as fases, formações e matizes ideológicos, assim como rachas, ações armadas e erros.

«ETA reconoce la responsabilidad directa que ha adquirido en ese dolor, y desea manifestar que nada de ello debió producirse jamás o que no debió prolongarse tanto en el tiempo, pues hace ya mucho que el conflicto político e histórico debía contar con una solución democrática justa»

Em seu comunicado, pediu desculpas pelo dano causado e às vítimas e seus familiares, no entanto nas entrelinhas é possível observar que não se desulpam pela luta armada em si, pela decisão de se insurgir contra uma ditadura e lutar pelo objetivo da independência, mas pelos erros cometidos, pelos efeitos da opção pela luta armada, dessa forma respeitando a memória também daqueles que caíram enquanto lutavam pelo grupo ou por serme próximos a ele.

A consecuencia de errores o de decisiones erróneas, ETA ha provocado también víctimas que no tenían una participación directa en el conflicto, tanto en Euskal Herria como fuera de ella. Sabemos que, obligados por las necesidades de todo tipo de la lucha armada, nuestra actuación ha perjudicado a ciudadanos y ciudadanas sin responsabilidad alguna. También hemos provocado graves daños que no tienen vuelta atrás. A estas personas y a sus familiares les pedimos perdón. Estas palabras no solucionarán lo sucedido, ni mitigarán tanto dolor. Lo decimos con respeto, sin querer provocar de nuevo aflicción alguna.

Não é algo leviano. É preciso analisar em perspectiva as ações de um grupo que nasceu para lutar pela independência de um povo e no processo combater uma ditadura sanguinária que torturava e matava bascos (e espanhóis), mas que ao longo do tempo acabou por tornar-se vítima da sua incapacidade de fazer avançar sua agenda, o que tornou a luta cada vez mais sangrenta e angariando cada vez menos apoio popular — e que fez inúmeras vítimas inocentes no processo e que, por isso, o perdão pedido é mais que bem vindo.

Não é correto (ou ético) colocar a culpa pelo conflito unicamente nas costas de jovens que decidiram pegar em armas para se defender de uma ditadura, mas é possível e necessário apontar os erros daqueles que decidiram seguir com armas em punho quando já não havia mais o (mesmo) inimigo pela frente e quando suas ações já não encontravam eco entre aqueles que dizia defender (ou por quem diziam lutar).

O Estado espanhol deve assumir também sua parcela de responsabilidade.

Mas o país onde segue na legalidade (e recebendo verba pública) uma fundação em homenagem a Franco e cujas manifestações de ódio de falangistas e afins são toleradas se recusa a assumir seus erros ou se arrepender.

É preciso, repito, analisar a história da ETA sob uma perspectiva crítica e desapaixonada. O grupo chegou a ter a simpatia não só de parte considerável da população basca, mas também por uma parte relevante da população espanhola, fato verificável pelos imensos protestos durante o chamado Processo de Burgos (dezembro de 1970), contra o julgamento de 14 militantes da ETA condenados a longos termos de prisão (e seis destes à morte) e antes por terem assassinado colaborador da Gestapo e notório torturador, delegado Melitón Manzanas, em 1968 (uma de suas primeiras ações armadas).

But back at the beginning, almost everyone accepted a vision of ETA as a band of young idealists prepared to risk their lives to defend a homeland and a language that since the bombardment of Guernica had been victimized by Franco. When, two months after Etxebarrieta’s death, another of those young idealists assassinated a police inspector, Melitón Manzanas, the Spanish left publicly celebrated, saying that a “torturer of Communists, Catholics and many other people” had passed on to a better world.

Uma coisa é analisar a resistência armada à uma ditadura, outra é a continuidade de uma luta (ou sua escalada) em um cenário diverso que, mesmo de imperfeita democracia, permitia mais espaços para avanço de agendas por outros meios que não as armas.

É verdade que o Estado não facilitou, a jovem democracia espanhola não abandonou os métodos do franquismo (vemos que até hoje, reparem na questão catalã que tanto já tratei por aqui), vide a criação e o financiamento de grupos fascistas de extermínio, como o Batalhão Basco Espanhol (BVE) ou os GAL durante os anos 80, estes comandados (supostamente) pelo então primeiro ministro Felipe González, do PSOE. O Estado não deixou de reprimir e perseguir bascos mesmo após a ditadura, mas é curioso como esta parte da história parece ter passado despercebida por muitos.

Escrevi ha alguns anos uma crítica à forma pela qual a mídia brasileira retratava o grupo em suas notícias (que não difere muito do tratamento geral dado mesmo na Espanha e no resto do mundo):

Algo interessante de se notar na cobertura da mídia brasileira nas questões relativas à ETA — fora a mais completa ignorância relativa ao assunto — é a forma tendenciosa e acrítica pela qual noticia o que acontece no País Basco, sem falar no parágrafo perpétuo em quase toda notícia, descrevendo que a ETA matou não sei quantas pessoas etc… A tentativa é clara: denegrir a imagem não só da ETA, mas de todo o movimento nacionalista basco, reduzir tudo ao mesmo denominador, chamar tudo de “terrorismo”.

Nenhuma linha sobre o movimento nacionalista, sobre o franquismo, guerra suja… Nenhum artigo maior explicando o que efetivamente quer a ETA e as razões para seu surgimento e luta até os dias de hoje… Tudo se resume ao número de vítimas. Mas nunca às vítimas do Estado, dos grupos de extrema-direita. A Espanha é a vítima inocente; os bascos são os terríveis assassinos. É a proposital e intencional “confusão” dos meios de comunicação que buscam criar a — falsa — imagem de que os bascos e sua luta por independência são terroristas que professam ideologia de ódio.

É um reflexo do desconhecimento e da falta de perspectiva hihstórica em relação ao grupo e ao conflito basco em si, que é maior do que uma mera disputa entre o Estado e um grupo alegadamente terrorista.

O fim do grupo abre as portas para um novo caminho, mas é preciso ter em mente que a Espanha tenta de todas as formas minar este caminho ou mesmo fechar à força as portas.

No país Basco há uma piada (com imenso fundo de verdade) onde se diz que para a Espanha “tudo é ETA”. Usar roupas tradicionais, falar euskera, a lingua do povo basco, até ter uma tatuagem com algum símbolo histórico é, para a Espanha, suficiente para acusar alguém de ser membro da ETA, mandá-lo à prisão e mesmo torturá-lo.

Todo o processo de cessar-fogo, desarme e enfim dissolução foi levado adiante unilateralmente, pela ETA e apoiadores (alguns até criminalizados por participar no processo), à revelia do Estado que sempre tentou e tenta criminalizar de todas as formas toda e qualquer luta pela independência do País Basco, que promove torturas, ilegalizações de partidos, censura a jornais e seu fechamento forçado, enfim, que tem (ou, agora, tinha) na ETA uma desculpa para levar adiante um processo de sufocamento e criminalização.

Pouco se espera do Estado espanhol, mas ao menos agora a sociedade basca pode lidar com seus fantasmas e abrir um processo de diálogo amplo a fim de buscar soluções para seus conflitos.

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Raphael Tsavkko Garcia
Raphael Tsavkko Garcia

Written by Raphael Tsavkko Garcia

Journalist, PhD in Human Rights (University of Deusto). MA in Communication Sciences, BA in International Relations. www.tsavkko.com.br

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