Do extermínio nas favelas à buceta rosa: As guerras identitárias são um jogo de soma zero
Um dos principais problemas do identitarismo é que é um movimento eminentemente estético. Ele não tem o objetivo ou a capacidade de efetivamente mudar algo, mas tão somente de criar/sustentar uma imagem de virtude com base em muita gritaria e silenciamento visando garantir os holofotes para os (e em especial as) militantes de causas diversas.
É, como eu já disse antes, “o abandono das grandes lutas, (d)as grandes narrativas, pelas microlutas (contra micromachismo, microagressão, etc)”. O foco principal desse movimento (que pese a multiplicidade de pautas, pode ser chamado de movimento Social Justice Warrior ou de Justiceiros Sociais) é “lacrar”, ou seja, forçar que o outro se cale por pura pressão, chantagem, intimidação e ameaças. Não cabe a educação, não cabe ensinar ao outro, muito menos o diálogo, mas sim a submissão apenas aparente — já que os reais sentimentos são jogados pro subterrâneo para, depois aflorarem com mais força (que o diga Trump).
Movimentos cuja função primordial é (ou era) a de ensinar, educar, empoderar enquanto pressionam governos, passaram a agir como grupos de pressão contra a própria sociedade. Não educam, não ensinam, mas submetem e calam. Se recusam a explicar qualquer coisa achando que, oras, é óbvio que deveríamos saber e pensar como eles — depois não entendem quando aqueles que foram silenciados seguem o caminho contrário ao que esses movimentos esperavam.
Esse artigo da Ponte deixa isso absolutamente claro: A revolta por uma estupidez como o tal “buceta rosa” ganhou muito mais repercussão e repúdio (mesmo entre militantes) que o assassinado de um menino negro, do que uma intervenção militar, do que um cotidiano de violência imposta em favelas.
E que fique claro, não digo que alguma revolta em relação ao vídeo seja estúpido e sim que o vídeo e a atitude de sair fazendo uma gringa cantar “buceta rosa” é estúpida.
Em parte isso se explica pela impossibilidade de se lacrar no tema. É preciso sair às ruas, se mobilizar, enfim, fazer mais do que montar um coletivo de 3 pessoas no Facebook e assinar alguma cartinha exigindo a cabeça ou o emprego de alguém que contou uma piada que ofendeu as sensibilidades de quem precisa de safe spaces e trigger warnings.
Pra protestar contra o vídeo da “boceta rosa” basta reclamar muito nas redes sociais, compartilhar um vídeo, caprichar no virtue signalling e exigir a cabeça dos envolvidos — tudo isso sem levantar do sofá.
Ele foi racista, vamos queimar a casa dele (mas sem precisar sair do facebook)!
Ele foi machista, vamos acabar com a vida dele (mandando e-mails pra empresa que ele trabalha)!
Ele falou mal de veganos, vamos enfiar uma cenoura… ops, vamos xingar muito no Twitter!
Ele foi gordofóbico, vamos postar fotos de gordas de bikini no Instagram pra protestar!
Já para exigir providências sobre o assassinato indiscriminado de negros e pobres em favelas o esforço é um pouquinho (#ironia) maior. É muito fácil você demonstrar sua revolta contra o “machismo” exigindo a demissão ou a humilhação do suposto responsável, basta deixar a turba agir. Mas para efetivamente buscar soluções para problemas sociais graves (não que machismo não seja um problema social, obviamente) a exigência é mais alta e pouca(o)s lacradora(e)s estão disposto(a)s a realmente fazer algo a respeito.
Qualquer coisa que vá além de gritar, lacrar e silenciar o outro é complicado demais para quem ganha a vida apenas sendo superficial faendo textão no Facebook e dando palestras para a bolha.
Não se trata, como fazem os próprios justiceiros sociais, de criar categorias de opressão e colocar numa escala o que é mais ou menos importante e sim trata-se de apontar para a banalidade de certas formas de mobilização e pautas que, no fim, acabam servindo também para apagar ou reduzir a relevância outras pautas.
Na realidade, acabam nos oferecendo pérolas como a seguinte:
Dá pra perguntar pra ~militância~ como a gente chama isso? Só não me venham com “reação do oprimido”. Aí depois galera não entende porque Bolsonaro cresce tanto.
Tenho minhas críticas ao texto da Ponte, no entanto, por apostar também num identitarismo torpe, mas de sinal trocado, reduzindo o problema que existe com o machismo pela vítima ser branca, como se isso retirasse a legitimidade de alguma reclamação em relação ao tratamento recebido.
Chama especial atenção no escândalo da boceta rosa a disposição diligente do público em condenar o constrangimento de uma mulher branca, russa, bem vestida, muito bonita. Sem iminência de violência física, o constrangimento moral é combatido como inaceitável pelo público ativista. Aos responsáveis pelo vídeo reclamam-se punições duras.
Qualquer sombra de constrangimento a uma mulher branca e bem situada socialmente faz um enorme poder de comunicação se movimentar em torno de um assunto tratado de modo monolítico. Não há espaço para dúvidas sobre a gravidade do fato. As punições são cobradas como se a intenção de que quem participou do momento fosse a de humilhar uma mulher perante uma nação inteira, humilhando também todas as mulheres naquele ato. Qualquer fissura na narrativa de denúncia do machismo é considerada conivente com o que é descrito como crime.
No fim as guerras identitárias se mostram ridículas mesmo entre aqueles que estão, em tese, do mesmo lado e não somente entre apoiadores e detratores das táticas de lacração cujo princípio é o de essencializar os indivíduos e, com base nisso, criar categorias de opressão dando ou retirando o direito de grupos — essencializados — de serem ou se sentirem vítimas (ou algozes) com base em características físicas/biológicas e em puro achismo.
Um pouco mais sobre o tema: