A perseguição a um líder ocultista e um caso mal resolvido de assassinato de crianças

Raphael Tsavkko Garcia
6 min readMay 25, 2019

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Tradução do meu artigo “The Unresolved Persecution of a Brazillian Occultist” pra a The Wild Hunt

Em setembro de 2017, os corpos de duas crianças desmembradas foram encontrados na cidade de Novo Hamburgo, no sul do Brasil. Um corpo pertencia a um menino entre oito a dez anos e o outro a uma menina entre 10 a 12 anos. Os membros foram depositados em uma caixa à beira de uma estrada local e encontrados em 4 de setembro. Cães de rua encontraram mais partes dos corpos das crianças em sacos de lixo em um riacho próximo alguns dias depois. As cabeças das crianças nunca foram encontradas.

Segundo a polícia, dois empresários haviam ordenado um ritual satânico para trazer mais prosperidade aos seus negócios e Silvio Fernandes Rodrigues, fundador do Templo de Lúcifer, teria realizado o ritual de sacrifício das crianças pelo valor de 25 mil reais.

Duas testemunhas que afirmaram ter participado do ritual passaram a informação ao chefe da polícia, Moacir Fermino. Segundo informações da imprensa local, Fermino estava conduzindo a investigação com base em uma “revelação” do deus cristão, e suas conferências de imprensa estavam repletas de linguagem religiosa cristã, como a e que ele seria guiado por “profetas”.

Esses testemunhos serviram de base para a investigação, que levaram o Templo de Lúcifer, na vizinha cidade de Gravataí. Segundo Rodrigues, quando Fermino chegou à sua casa para prendê-lo, disse: “Eu sou Deus, e vim para prender Satanás”. (O nome dessa operação policial era sugestivo: “Revelação”).

Quando foi divulgada a informação sobre a suposta participação de um sacerdote satânico no brutal assassinato das crianças, a mídia rapidamente começou a descrever o local de culto como uma casa de horrores, com caveiras, sangue e símbolos malignos por toda parte (o site do Templo fornece uma série de fotos do lugar). Embora a informação tenha rapidamente se provado falsa, a narrativa do assassinato em um ritual satânico prevaleceu.

Detalhes imaginários eram abundantes, como a idéia de que as crianças tinham sido sacrificadas a Moloch, uma figura divina da mitologia amonita em tempos pré-cristãos e transformada em um demônio na tradição cristã. A informação em torno do caso, e em particular a citação de Moloch, parece ter vindo diretamente da Wikipédia, ou talvez de um episódio de Buffy, a Caçadora de Vampiros.

A verdade, porém, é que Silvio Rodrigues usa elementos de diferentes linhas religiosas para ajudar pessoas vivendo dramas maritais e financeiros, explicou o jornalista Igor Natusch para The Intercept Brasil. No site oficial do Templo de Lúcifer, o “bruxo”, como Rodrigues se intitula, afirma que é “considerado um dos quatro melhores mestres da alta magia teúrgica, Goetia, Quimbanda e Catimbó de exu do Brasil e da América Latina”.

É seguro dizer que Rodrigues nada mais é do que o líder de um pequeno e inofensivo templo esotérico e sincrético que, segundo ele, tem seguidores em várias partes do mundo.

Em entrevista ao The Wild Hunt, Rodrigues disse que quando criança freqüentava um templo da Quimbanda (religião afro-brasileira) e também buscava conhecimento sobre umbanda e santería (religião de origem iorubá). Mais tarde foi iniciado em Catimbó de exu, um sincretismo de afro-religiões e conhecimento indígena brasileiro. Anos mais tarde, teve um encontro com a divindade Belzebu e tornou-se seu seguidor.

Em relação à sua filosofia, Rodrigues diz que “a dualidade é muito importante em nossas vidas, e Lúcifer é uma energia. Meu trabalho é propagar que Lúcifer não é mau, o mal não está na espiritualidade, mas nas pessoas. E através dessa energia, dessa filosofia, algumas coisas de alta magia foram adicionadas. No final, uma filosofia foi criada e através dela eu ajudo as pessoas, [eu] resolvo problemas das pessoas, sejam eles quais forem”.

No início de 2018, o chefe de polícia Rogério Baggio Berbicz, que mais tarde assumiu as investigações após retornar de férias, descobriu que uma pessoa, Paulo Sérgio Lehme, dono de um ferro-velho onde trabalhava um dos ditos informantes, havia pago os informantes para contar a história, e prometeu moradia, alimentação e pagamentos mensais do Protege, um programa estadual que presta assistência à testemunhas. As provas foram forjadas. Um segundo informante era o filho de Lehme, e um terceiro informante também havia sido contatado por Lehme para dar testemunho falso.

Ainda não está claro se Lehme se aproximou do delegado Fermino ou o contrário.

Cinco pessoas foram injustamente detidas durante as investigações conduzidas com base no fanatismo religioso do delegado Fermino. Elas foram libertadas após o regresso do Berbicz, em Fevereiro. Dois outros suspeitos tinham fugido antes de serem presos. A polícia não conseguiu encontrar qualquer ligação entre os sete suspeitos.

O delegado Fermino é evangélico, recentemente convertido à Igreja Adventista do Sétimo Dia. Ele se apresenta como um “servo de Deus” e alimentou o sonho de ser pastor. Aproveitou o caso para se promover e também para atacar o líder do que via como um culto pagão que misturava elementos do Satanismo, da Quimbanda e de elementos judeus (como a Cabala). Acusado de falsificação de documentos e corrupção de testemunhas, Fermino está agora sendo processado pelo procurador da justiça criminal de Novo Hamburgo.

Suas razões para forjar provas ainda são desconhecidas, mas o preconceito religioso parece ser a melhor explicação. Segundo Rodrigues, Fermino teria tentado usá-lo como exemplo para se promover politicamente, especialmente dentro de sua igreja, já que tinha aspirações políticas. (Ele havia concorrido duas vezes para vereador sem sucesso.) “Tive azar,” diz Rodrigues, “porque eu era muito conhecido. Ele montou tudo e quando percebi, eles vieram aqui e me prenderam”.

Rodrigues afirma que foi maltratado e passou fome na primeira semana da sua prisão. Foi então levado para uma prisão maior, onde diz que outros prisioneiros queriam matá-lo.

As igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais cresceram no Brasil nas últimas décadas, focando em populações vulneráveis e aumentando seu poder financeiro e político. Estas igrejas controlam vários canais de televisão e estações de rádio, e criaram seus próprios partidos políticos e uma poderosa bancada no Congresso Brasileiro. São denominações religiosas conservadoras, que em geral extorquem crentes pobres em troca de promessas de prosperidade no que ficou conhecido como “teologia da prosperidade”.

Muitos desses pastores pregam abertamente a homofobia e o preconceito contra os adeptos das religiões africanas e não-cristãs, incluindo as religiões esotéricas, como a forma sincrética de Satanismo de Rodrigues. Alguns pastores pregam a violência e chegam ao ponto de destruir os terreiros das religiões afro-brasileiras. Particularmente no Rio de Janeiro, alguns são conhecidos por terem ligações com grupos de tráfico de drogas e milícias armadas.

No Rio de Janeiro existe um grupo conhecido como Geração Jesus Cristo, que apoia abertamente a substituição da Constituição brasileira pela Bíblia e está envolvido em casos de islamofobia.

Até hoje, não se sabe quem matou as duas crianças, e o templo sagrado de Rodrigues foi destruído durante a investigação. A reputação de Rodrigues foi arruinada: ele foiconsiderado um criminoso perigoso, e seu rosto, nome e local de trabalho foram amplamente divulgados. Foi vítima de assassinato de reputação pelo ódio e fanatismo de um fiel de uma denominação religiosa que se tornou poderosa no Brasil. O fervor deste tipo de cristianismo evangélico tornou-se motivo de preocupação por parte de seguidores de outras religiões e denominações espirituais ou esotéricas.

Rodrigues diz que gastou quase todas as suas economias em advogados e que ele e sua família ainda estão sendo alvo [dee preconceito] e julgados nas ruas, mas que ele está tentando se levantar novamente e pensando em pedir doações para ajudar a reconstruir seu templo. Ele diz que nunca sofreu “este tipo de discriminação antes. Isso destruiu minha vida, acabou com minha vida. Hoje eu não estou conseguindo me levantar. Não estou conseguindo me aprimorar novamente”.

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Raphael Tsavkko Garcia
Raphael Tsavkko Garcia

Written by Raphael Tsavkko Garcia

Journalist, PhD in Human Rights (University of Deusto). MA in Communication Sciences, BA in International Relations. www.tsavkko.com.br

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