A luta pelo acesso à maconha medicinal no Brasil

Theo, um jovem de 14 anos que vive no Rio de Janeiro, sofre de um tipo de epilepsia que causa crises de ausência — convulsões que levam a lapsos de consciência. “Não são exatamente essas convulsões que conhecemos onde a pessoa cai no chão, mas elas são desafiadoras e difíceis de controlar e têm um impacto sobre sua qualidade de vida”, disse a mãe de Theo, Rita Carvana, à Filter. Theo foi diagnosticado quando tinha 12 anos. O primeiro medicamento prescrito por seu neurologista teve pouco efeito. O segundo tampouco teve grande efeito. Carvana decidiu experimentar a cannabis ou maconha medicinal. Havia muitas dificuldades para obtê-la; “poucos neurologistas no Brasil prescrevem”, disse ela.
É difícil comprar maconha medicinal no Brasil, e é difícil manter o curso do tratamento — o óleo é muito caro. Carvana diz que ela costumava pagar o equivalente a quase 1800 reais por mês.
“O preconceito contra o THC está sendo fomentado pela indústria farmacêutica … e isto por razões puramente financeiras”.
Carvana conseguiu pagar pelo tratamento durante quase um ano, sofrendo com a desvalorização da moeda brasileira para importar o óleo. Em março de 2020 ela foi à justiça para forçar seu plano de saúde a cobrir o custo. Em maio, ela ganhou. Hoje, seu plano de saúde cobre os dois tipos de extrato que Theo utiliza: canabidiol isolado (isolated cannabidiol) e de espectro completo (full spectrum).
“No meio da pandemia, foi um grande alívio”, disse Carvana. “Eu pude pagar todo esse tempo, mas foi muito caro… Eu trabalho no setor cultural e, nos últimos dois anos perdemos muito padrão de vida, a crise econômica no Rio de Janeiro é muito forte. Se por um lado eu tive este privilégio de pagar pelo remédio do meu filho, também me custou muito, no sentido de que tenho muitas dívidas”.
Uma das maiores dificuldades na luta pela legalização completa da maconha medicinal é o preconceito que existe contra o THC. “A indústria, o mercado, ganha muito mais com o óleo de CBD do que com o óleo de canábis de espectro completo que pode ter alta, média ou baixa dosagem de THC”, disse Carvana. “O óleo de espectro completo quase sempre agirá melhor por causa do ‘efeito de comitiva’, e requer doses menores. Portanto, vemos claramente que o preconceito contra o THC está sendo fomentado pela indústria farmacêutica … e isto por razões puramente financeiras”.
O tão desejado “efeito de comitiva” — pelo qual os muitos componentes químicos de uma droga produzem melhores resultados do que qualquer outro — só pode ser obtido com cannabis de espectro completo, que ainda não é encontrada nas farmácias.
Um movimento a caminho da descriminalização
O Brasil está caminhando para a descriminalização da cannabis, mas de forma lenta e freqüentemente contra os esforços das autoridades. O governo de extrema direita e anti-ciência do Presidente Jair Bolsonaro e a forte presença de religiões fundamentalistas têm dificultado o caminho para a legalização total. “No passado, eles disseram que não havia cannabis medicinal, que ela não tinha nenhum efeito. Agora eles dizem que de fato tem efeito, mas apenas a CBD isolado, que seria a substância de Deus enquanto o THC é a substância do diabo”, disse Carvana.
E ainda assim, tem havido algumas vitórias.
A luta pela descriminalização da maconha no Brasil ganhou terreno em 2011, ano em que a polícia reprimiu violentamente a marcha anual da maconha no Rio de Janeiro. “Isso deu origem a um debate que chegou à [Suprema Corte], que legalizou as marchas — que eram organizadas pelo coletivo DAR [Desentorpendo a Razão]”, disse Henrique Carneiro, professor de história da Universidade de São Paulo, à Filter.
Há um ano, a regulamentação dos produtos de cannabis no Brasil foi aprovada pela ANVISA, a agência reguladora da saúde do país. Carneiro descreveu a mudança como “uma concessão mínima” — uma licença de importação de um produto que custa o equivalente a 1,900 reais por mês.
A decisão permitiu que empresas como a Prati-Nonaduzzi e Beaufor Ipsen vendessem produtos medicinais de maconha em farmácias para pessoas com receita médica, sujeitos à inspeção da ANVISA. O cultivo de maconha em território brasileiro, no entanto, foi rejeitado, levantando sérias questões sobre a logística de produção e importação. O primeiro medicamento contendo THC foi liberado para venda em abril de 2020.
“A decisão da ANVISA facilita o acesso ao tratamento baseado na maconha para diversas condições que podem se beneficiar de seu uso”, disse o Dr. Pietro Vanni, psiquiatra da Clínica Gravital do Rio de Janeiro, à Filter. “No passado, o paciente tinha que importá-la pedindo a autorização da ANVISA e ele tinha que recorrer à justiça”. Somente condições realmente muito sérias podiam ter acesso [à maconha médica]. Com a decisão, podemos tratar mais facilmente uma grande variedade de pacientes. Isto se reflete em um melhor tratamento para o paciente, em uma melhor qualidade de vida. É crucial que tenhamos a maconha medicinal legalizada, pois ela é algo que tem provas científicas dos benefícios”.
Segundo Vanni, existem três maneiras de obter legalmente a maconha medicinal no Brasil. A primeira é comprar na farmácia, onde as opções são limitadas a dois medicamentos. Um deles, Canabidiol Prati-Donaduzzi, é um canabidiol/CBD isolado muito caro; o outro, Mevatyl, tem uma relação de 1:1 CBD para THC.
A segunda maneira é importar os medicamentos — mais acessíveis, mas também mais demorado, pois envolve garantir a aprovação da ANVISA. Antes da decisão da ANVISA de regular a importação de cannabis, levava 90 dias para que a organização decidisse sobre as permissões caso a caso e pelo menos mais um mês para importar o medicamento. Hoje, a autorização é muito mais rápida — cerca de duas semanas.
A terceira forma de acesso à maconha medicinal é através de associações formadas por usuários que procuram produzir o medicamento, que oferece pouco em termos de variedade. “Não é uma questão de qualidade inferior, mas não tem todas as certificações, análises e há uma certa inconsistência nas doses”, disse Vanni. Existem apenas duas associações legais no Brasil, e uma delas, a APEPI, teve sua liminar cassada em novembro de 2020. Hoje, somente a ABRACE pode fornecer maconha medicinal a seus membros. As únicas formas de acesso à maconha de espectro completo — do tipo que produz o efeito de comitiva — são através da importação ou de associações.
Os preços terrivelmente altos do produto em um país cujo salário mínimo é o equivalente a cerca de 1000 reais por mês dificultam o acesso da maioria, o que significa que as pessoas ainda têm que recorrer a meios ilegais — como o próprio cultivo da planta. Em 2017, um em cada três brasileiros encarcerados havia sido acusado de tráfico de drogas. Em 2019, o número de brasileiros encarcerados com tais acusações totalizava 163.000. E a maioria dos encarcerados, seja por tráfico de drogas ou outras acusações, são pobres e negros.
“Os altos preços do produto dificultam o acesso da maioria, o que significa que as pessoas ainda têm que recorrer a meios ilegais”
O acesso à maconha medicinal no Brasil é, portanto, muito difícil. Está fora do alcance de muitos que não podem pagar por ela, ou que não vivem perto de uma associação que a produz. Uma solução parece residir em indivíduos que buscam permissão judicial para plantar e produzir seus próprios remédios em casa.
Barbara Gael é uma tradutora baseada em São Paulo que pesquisa a cannabis medicinal e usa um tratamento à base de óleo de cannabis — alto-CBD e baixo-THC — para sua depressão e ansiedade. “A ansiedade ainda existe, mas é muito mais suave”, disse Gael à Filter. “E a depressão se foi, assim como as idéias suicidas”.
Gael diz que hoje é possível para os brasileiros encontrar médicos especializados em maconha medicinal, mas que as informações confiáveis sobre os métodos de tratamento permanecem escassas. “As pessoas muitas vezes pensam que a CBD é boa, mas a THC é má”, disse Gael. “O custo do tratamento pode ser muito alto. Nem todos podem pagar pela consulta e pelos óleos. Para aqueles que precisam de altas doses, a solução é pedir [um] habeas corpus para plantar em casa e fazer seu próprio remédio. É essencial que o tratamento da cannabis seja rapidamente incluído no SUS para que as famílias de baixa renda também possam se beneficiar dele”.
* Publicado originalmente como “The Struggle for Medical Marijuana Access in Brazil” pela Filter Magazine.